Poemeus

A LAVADEIRA
Vi a lavadeira na beira do rio
seus dedos calejados
sua espinha arqueada
suas pernas abertas
seu olhar concentrado
o sol a pino na cabeça
A lavadeira me viu
E me disse
apontando a roupa, o sabão, o rio
isso é só outra maneira de ver as coisas
mais limpas, mais puras, sem manchas
porque a água passa por elas
mas a água não passa sempre
A lavadeira continuou seu mister
e o sol pouquinho a pouquinho
foi se acabando, devagarinho
NINGUÉM CHOROU
Abreviei sua caminhada noturna
sorrateira
com a sola do meu sapato.
Deixei órfãos o assoalho
os cantos escuros
os dentros dos armários
Amanheceu sem que outras baratas
viessem chorar por aquela que assassinei
Estamos igualmente sozinhos na cozinha
eu e a morta
NÓS
No outro lado da rua
parada
como às vezes o tempo para
estavas tão linda aquele dia!
Nós dois éramos tão felizes
sem mim!
MOVIMENTOS COORDENADOS E REPETITIVOS
Da nuvem sai uma mão
da mão, um dólar
do dólar, uma cachaça
da cachaça, dois olhos vermelhos
dos dois olhos vermelhos, a raiva
da raiva, a língua virulenta
da língua virulenta, um impropério
do impropério, a valentia
da valentia, uma pistola
da pistola, um tiro
do tiro, um morto
do morto, uma alma
que ganha sopro, vibra no ar, sobe até virar nuvem.
NÃO ERA POETA
Ele dizia que não
não era poeta
não sabia nem o que era
poesia
mas quando contemplou pela primeira vez o mar
— a primeira e única vez que viu o mar —
ficou muito sério
muito calado
até que disse
bendito seja Deus por ter me dado olhos
Tags:barata, lavadeira, mar, nós, poesia, poeta, rio